Sistema financeiro e economia real: quando o rabo abana o cachorro

Recentemente tem sido bastante debatido entre os economistas a questão sobre o impacto das políticas fiscal e monetária no comportamento do sistema financeiro e, consequentemente, no setor produtivo real.

Para os economistas ortodoxos, o mercado financeiro tem pressentido um aumento do risco Brasil, visto a recente elevação na inclinação na curva de juros que remuneram os títulos do Tesouro.

Para uma explicação mais detalhada da inclinação da curva de juros veja este post.

O aumento da inclinação da curva de juros indica que o mercado financeiro vê certo perigo de descontrole fiscal e inflacionário no futuro e, por isso, exige taxas de juros maiores para emprestar dinheiro para o governo em períodos maiores do que um ano.

Esse tipo de comportamento dificulta o financiamento da dívida pública, pois os juros maiores encarecem o financiamento dos gastos públicos, como também dificulta a prática de rolagem das dívidas do governo.

Visto isso, os economistas ortodoxos afirmam que é insustentável a manutenção da taxa Selic no patamar atual. Para estes, mesmo que a taxa Selic seja determinada pelo Banco Central, é o mercado que define sua validação. Em outras palavras, não adianta a Selic estar no patamar de 2% se o mercado acha que ela deverá estar mais elevada.

O mercado irá encontrar outro caminho para alocar os recursos. Haverá fuga para ativos do exterior, o que pressionará o câmbio, gerando inflação e, por sua vez, uma pressão para que o Banco Central aumento a Selic. Ou seja, não dá pra contrariar o mercado.

Apesar de todas as regras, no final é o mercado financeiro quem ditará a taxa de juros ideal (ou natural), o que corrobora com a tese de que a taxa de juros é endógena ao sistema.

Tendo em vista esta perspectiva, a questão passa a ser: o que determina as forças que definem os juros no sistema financeiro?

Como tudo em economia, temos um debate entre ortodoxos, representados pela teoria dos fundos de empréstimos (TFE), e os heterodoxos, representados pelos keynesianos.

Além de terem visões diferentes para a determinação da taxa de juros, ambas abordagens também pressupõem receituários distintos de política econômica.

Vejamos a seguir como se desenrola esse embate.

A teoria dos fundos de empréstimos

Os economistas ortodoxos analisam o sistema financeiro a partir da chamada Teoria dos Fundos de Empréstimos (TFE).

Esse raciocínio parte dos seguintes pressupostos:

1) Em nível agregado, a taxa “natural” de juros é determinada endogenamente pela demanda e pela oferta de fundos.

2) Nesta tradição, o investimento corresponde à demanda por fundos, e a taxa de juros é o preço pago pelo uso do capital em qualquer mercado. Ela é concebida como a taxa de aluguel do capital e é obrigatoriamente igual à taxa de lucro.

3) Por definição, é a poupança que financia o investimento. Assim, a poupança é concebida como um mecanismo real, no sentido de não monetário.

Diante destes pressupostos, no modelo neoclássico, investimento e poupança são determinados endogenamente, a partir de variáveis reais.

Aqui temos que a taxa de juros de equilíbrio depende, de um lado, da poupança – derivada da renda e da propensão a economizar – e, por outro lado, pela demanda por crédito para investimentos – determinada pela produtividade do capital.

Essa produtividade é o que limita os juros que podem ser pagos pelos projetos de investimentos. Na tradição clássica, a taxa de juros é igual à taxa de lucro e à produtividade marginal do capital.

A neutralidade da moeda é dupla: por um lado, a moeda não afeta a renda e, por outro lado, está tendo uma determinação real (e não monetária) da taxa de juros.

Em resumo, é o lado real da economia que determina a taxa de juros e a quantidade de crédito a ser ofertado para o investimento. Isso indica que o uso da política econômica para alterar as condições de emprego e renda da economia é uma péssima escolha, pois poderá gerar inflação e, consequentemente, aumento do desemprego como remédio posterior para reequilibrar o mercado.

Essa perspectiva não é compartilhada por Keynes. Como será visto a seguir, os keynesianos contrapõem essa lógica, afirmando que é o mercado financeiro quem dita a dinâmica da economia real, e que ações de política econômica são desejáveis para levar o sistema ao nível desejado de renda e emprego.

A abordagem keynesiana

A crítica feita por Keynes é diretamente ligada às modalidades de determinação da taxa de juros e, consequentemente, à natureza da poupança.

Na Teoria Geral de Keynes, a taxa de juros é determinada exogenamente pela preferência pela liquidez (PL), pela eficiência marginal do capital e pelas expectativas de longo prazo dos empresários a partir do seguinte mecanismo:

1) A PL determina a demanda por moeda, a qual explica, num segundo momento, as variações da taxa de juros necessárias para igualar, novamente, demanda e oferta por moeda. Existe assim uma determinação monetária da taxa de juros, com esta sendo determinada, em última instância, pela PL.

2) Como resultado, temos que a poupança não pode financiar o investimento, pelo fato de a poupança ser a resultante da variação de renda produzida pela variação inicial do investimento. Em outras palavras, é impossível financiar o investimento inicial a partir de um valor que não existe quando esse investimento é realizado. Assim, o investimento não pode depender de uma poupança prévia.

No modelo neoclássico, ao contrário, a taxa de juros determina a demanda por moeda e é concebida como o custo de oportunidade de se reter moeda; quanto maior é esse custo, menor é a demanda por moeda.

No modelo keynesiano, a taxa de juros é determinada exogenamente e sem nenhuma relação com a produtividade marginal do capital, sendo influenciada por mecanismos institucionais e pela avaliação que os agentes fazem da incerteza.

Para esquematizarmos tudo isso, podemos separar as ideias dos neoclássicos e keynesianos da seguinte forma:

1) para os neoclássicos a poupança, que é determinada por fatores reais, influencia o investimento e a taxa de juros.

2) para os keynesianos, é o investimento que precede a renda e, por sua vez, a poupança da sociedade. Este investimento, por conseguinte, é afetado por fatores monetários (preferência pela liquidez e taxa de juros) e expectacionais (expectativa de demanda).

Ao incorporar a incerteza e a função especulativa da demanda por moeda no modelo econômico, Keynes altera totalmente os mecanismos de determinação do modelo neoclássico.

Não é mais a produtividade do capital que determina o equilíbrio do sistema, mas sim fatores relacionados ao humor dos mercados. Desta forma, os níveis de emprego e renda das sociedades ficam sujeitas às constantes e imprevisíveis oscilações dos agentes financeiros.

Na abordagem keynesiana não é a economia real quem dita a dinâmica do setor financeiro, mas o contrário.

Implicações para a política econômica

Em suma, a perspectiva keynesiana é aquela em que não é o mercado real que determina a dinâmica do sistema financeiro, mas o contrário. A preferência pela liquidez dos agentes afetará o investimento, a demanda agregada e, consequentemente, os níveis de emprego e renda da sociedade.

É a mudança nas expectativas e na PL que causa as oscilações endógenas na atividade dos mercados. O aumento da percepção da incerteza quanto à demanda da economia afeta a rentabilidade esperada do capital. Com isso, passa a haver certo receio do sistema financeiro para a concessão de crédito, que, consequentemente, se materializa na queda dos investimentos e da produção.

Diante disto, caberia ao Estado, via política monetária e fiscal, tentar restabelecer as expectativas dos agentes econômicos (empresários e financistas). É necessário, para isto, políticas de gastos e investimentos públicos para induzir a melhora das expectativas de demanda dos empresários.

O problema maior é lidar com o sistema financeiro. Este não é facilmente domável. É necessário ponderar os efeitos da política para países não desenvolvidos, com o Brasil, visto a existência de diferenças institucionais importantes.

Enquanto que nos EUA o mercado financeiro fica ansioso pelos pacotes de estímulo do governo, aqui este tipo de evento é visto com receio. Isso torna os esforços de política monetária e fiscal menos eficientes do que nos países desenvolvidos.

No Brasil, é comum que aumentos de gastos e a queda dos juros induzida pela política monetária terão, ao menos no curto prazo, um impacto ruim no sentido de aumentar ainda mais a PL, induzindo a demanda por outros ativos, como o dólar.

Porém, é difícil esperar a mudança de humor do sistema financeiro para que o país consiga retomar os rumos do crescimento. A queda da renda e o aumento do desemprego requer soluções rápidas, pois podem gerar impactos políticos perversos.

Além disso, como os determinantes do equilíbrio do sistema financeiro não são os mesmos presentes na determinação do lado da produção real da economia, nada garante que um equilíbrio no lado financeiro irá gerar retomada dos investimentos e da produção.

Como o próprio Keynes já ensinou em seus escritos, mesmo em equilíbrio o sistema econômico não garante o pleno emprego.

Referencias bibliográficas

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